Mar – fainas e lazeres

Os Pescadores/
Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos ao ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento.
Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado… Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci…
– Agora!
As mulheres da fonte deixam os cântaros e deitam a correr, e a companha mete o ombro as costado do barco e – oupa! -, retesando os músculos, empurra a Senhora dos Navegantes, que desliza nas pedras e entra no rio. Dois homens saltam dentro e levam-na para as amarras.
Estes factos insignificantes impressionaram-me para sempre a retina e a alma. Muito tempo perdi-os no tropel da vida, impõem-se-me hoje com um relevo extraordinário. Vejo outra vez tudo; as fisionomias, as coisas, a cor e a luz. Vejo os barcos encalhados com as letras mal feitas, escritas a piche no costado, Vai com Deus, senhora da Ajuda, Deus Te Guie, as redes nos varais e os pescadores de agulha na mão a remendá-las, as catraias e os batéis nas linguetas.
Manhã. Redemoinho de névoa lá no largo; vão chegar as lanchas e os batéis. Uns atrás dos outros à bolina, já os distingo muito ao longe. No areal todo de oiro secam redes encascadas, e entre os batéis varados forma-se grupos de mulheres que os esperam. Outras correm. Puxam pelos cabos das lanchas como homens ou carregam a caça que sai do cavername a escorrer. Dois, três barcos já na praia… uma companha encosta os ombros ao costado de uma lancha e – oupa! – empurram-na para cima. Mais batéis: é a força da sardinha despejada no areal. Mulheres acodem, o movimento aumenta e os gritos, os gestos, as atitudes imprevistas.
No Agosto começa a faina do patelo, assim se chama ao mexoalho ou pilado, que se deita vivo à terra para estrume. Junta-se no mar uma esquadra de barcos, que vêm da Póvoa, de Viana e de Caminha; junta-se na praia uma fiada de carros de todas as aldeias, próximas ou longínquas, que o transportam para o interior das terras. O areal está lastrado de patelo que remexe. Vende-se a laço ou a cesto, que leva cada um dois alqueires e custa três tostões. E por toda a costa neste tempo vai a mesma agitação na apanha do sargaço (…)

O excerto de texto aqui apresentado resulta da compilação de excertos da obra “Pescadores” de Raúl Brandão.
BRANDÂO, Raul – Os pescadores. Porto: Porto Editora, 2004


Ficha técnica
Título: Mar – Fainas e Lazeres
Fotografia: Teófilo Rego
Editor: Fundação Manuel Leão
Número de edição: 1
Ano de Edição: 2008
N.º de páginas: 84
ISBN: 978-989-8151-22-3
Dimensões: 210x210x9 mm

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